Ganhando destaque com o chamado Girls’ Games Movement, nos anos 90, a visibilidade das produções acadêmicas que focavam videogames e gênero foi muito importante, não apenas para compreender a posição de mulheres e pessoas LGBTQ dentro dessa cultura, mas também para o nascimento dos próprios Game Studies enquanto disciplina.
Com o objetivo de trazer essa discussão para o recorte brasileiro, o livro Videogames, Diversidade e Gênero: Pesquisa Científica e Acadêmica apresenta um panorama de trabalhos, pesquisas e projetos acadêmicos voltados para pensar gênero, sexualidade e videogames. Sob a organização de Beatriz Blanco – Mestra em Artes, modalidade Artes Visuais, pela Universidade Estadual de Campinas – e Lucas Goulart – Doutor em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul -, o volume contou com a colaboração das autoras Aline Job, Gabriela Kurtz, Ivelise Fortim, Mayara Caetano e Roxane Pirro.
Na edição de 2018 do SBGames, o trabalho foi apresentado durante o Jogos Diversos, para apreciação da comunidade acadêmica e desenvolvedora. A recepção foi excelente!
Conversamos com os organizadores para saber mais a respeito do processo de organização desse volume, bem como seus próximos passos para a continuidade dessa empreitada tão necessária.
[OFICINA LÚDICA] Como surgiu, entre vocês, a discussão de começar a organizar a produção desse livro?
[Beatriz] Nós sempre conversamos muito sobre pesquisa, trocando referências e comentando trabalhos recentes. Com isso e com a resposta positiva à trilha de diversidade, Jogos Diversos, no SBGames, surgiu a vontade de fazer algo com os pesquisadores e profissionais que estavam ali naquele momento.
[Lucas] Existe uma dificuldade histórica da indústria de jogos para lidar com a chamada “representação feminina” – ou seja, de produzir personagens ou estereótipos de mulheres que não estejam presentes nessas peças de mídia apenas como interesse sexual ou ainda em papeis passivos. Embora essas questões nunca tenham “sumido”, elas estiveram muito em destaque durante os anos 1990 – onde movimentos como o Girls’ Games Movement visibilizaram as diversas problemáticas decorrentes do problema da representação – e se mostram menos presentes nos anos 2000.
Entretanto, com o advento da internet 2.0 e do acesso de diversas pessoas que antes não acessavam ou não eram visíveis no meio, essas questões recomeçaram a ganhar força. No caso específico dos jogos, temos ainda o advento do chamado “Gamergate” – que demonstrou a existência de grupos que ativamente lutam contra a diversidade dentro dos jogos digitais – o que faz com que, nos últimos anos, esse tema tenha retomado uma importância tanto para a militância, quanto para o mercado, que compreende o público feminino e LGBT como “públicos alvo” sub-explorados.
Contudo, apesar de termos hoje uma indústria (tanto indie como AAA) que ativamente coloca a questão da “representação” como importante, vejo como necessária uma postura mais crítica, que possa analisar até onde essas ações nos auxiliam em uma posição que materialmente modifique tanto o acesso de mulheres e pessoas LGBT aos jogos, quanto jogos mais significativos e que tratem essas questões de maneira mais complexa.
Nossa ideia com o livro era, então, demonstrar as extensões dessas discussões, e o quanto a questão do gênero e da sexualidade nos jogos é ampla e vai muito além da relação mercadológica. Assim, resolvemos produzir o livro para marcar isso que consideramos um fenômeno cultural interessante: a produção de críticas aos jogos que levem em consideração coletivos que por muitos anos foram ignorados ou hostilizados, e como esse momento produz uma importante diferença para os jogos em si.
[OFICINA LÚDICA] Como foi poder contar com a participação de Adrienne Shaw? Como foi esse contato?
[Beatriz] Ela é a minha maior referência e eu não sei descrever o quanto estou feliz de organizar o livro que traz primeira a publicação dela em português! O contado foi tranquilo e feito pelo Lucas. Ele pode falar mais.
[Lucas] Acho interessante que até mesmo esse contato aconteceu devido aos coletivos que têm se formado por aqui. Dois amigos em comum – o Lu Bragança e o Milo Utsch – fizeram um trabalho maravilhoso de mapeamento gráfico de uma ferramenta organizada pela Adrienne Shaw, o LGBT Video Game Archive, que descreve todas as representações LGBT nos jogos. Assim, com o contato da autora, ela prontamente topou nos dar a entrevista, sendo sempre muito solícita e acessível.
[OFICINA LÚDICA] Qual o impacto que vocês esperam deste trabalho na área acadêmica e na produção de games aqui no Brasil?
[Beatriz] Esperamos que ele aproxime pessoas que já estão pesquisando o tema, mas ainda não conhecem a cena no Brasil. Nós mesmos conhecemos muita gente no evento, a cena de pesquisa em gênero e games hoje é bem maior do que imaginamos.
[Lucas] Acho que a academia tem hoje a responsabilidade de suplantar e sustentar duas necessidades que acabaram surgindo na relação contemporânea entre jogos e gênero /sexualidade: retomar a produção e discussão sobre gênero (e agora também sexualidade) dentro da academia, que estava em baixa desde o embate “narratologia contra ludologia” dos anos 2000, podendo assim compreender esse fenômeno para além da visão simplista de que “boa representatividade traz um ambiente mais diverso”; e a organização de coalizões para produção, visibilidade e cuidado dentro da cultura de jogos, fatores que se tornaram especialmente interessantes após o Gamergate.
[OFICINA LÚDICA] Vocês têm planos de darem continuidade a esses esforços por meio de mais dois volumes. Quais são os próximos passos?
[Beatriz] Queremos abordar mercado de trabalho e militância nos próximos volumes. A ideia é incluir pessoas dessas frentes também para contextualizar o debate acadêmico.
[Lucas] Os próximos volumes vão se centrar mais nas discussões dentro da própria indústria e também das produções de mídias especializadas nesse conteúdo e/ou militâncias feministas e queer / LGBT dentro da área de jogos. Essa “tríade” repete a relação clássica do Girls’ Games Movement – academia, produção de jogos e militância – que ainda compreendemos ser uma maneira muito potente de enxergar essas produções. Essa variação de aproximações com os temas acaba por fortalecer as coalizões e coletivos, podendo assim produzir diferentes visões desse fenômeno.
O livro Videogames, Diversidade e Gênero: Pesquisa Científica e Acadêmica pode ser encontrado em formato eBook nas principais plataformas online: Amazon, Apple iBooks Store, Google Play Books, Livraria Cultura, Kobo e Wook.
Os organizadores realizaram uma palestra de lançamento durante um dos Ciclos de Representação e Diversidade na Cultura Digital sediados pelo Instituto de Psicologia da USP, no dia 15 de março.